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Regressei ontem a casa.
Já lá tinha ido há uns dias buscar roupa e outros pertences deixados para trás naquela tarde fatídica. Essa foi uma viagem alucinante. Saí com a minha amiga Joumana de Verdun e o caminho que deveria levar uns 15 minutos arrastou-se durante mais de uma hora. Estradas cortadas devido a queda de fachadas na via, trânsito infernal a caminho do "ground zero", inversões de marcha sem fim para encontrar vias desimpedidas. A polícia a tentar fazer-nos voltar para trás, descrentes quando ela lhes explica onde fica a minha casa. Um sorriso desdentado da minha parte resolve a questão. Quando finalmente chegámos à minha rua e saímos do carro, o cenário era devastador. Curioso como a minha memória da minha rua estava tão enviesada face à realidade. Neste caso, muito pior do que a minha ficção. As pessoas a arrastar sacos e pertences, cães ao colo, vestuários improvisados, parecíamos todos refugiados de uma guerra sem lados. Há dois dias que ando vestida com uma camisa e umas calças de fato de treino masculino demasiado grandes para o meu corpo. Estivemos muito pouco tempo dentro do apartamento, depois de atravessarmos o hall destruído do edifício, depois de passarmos por baixo de vigas tombadas sobre a escadaria e de subir as escadas ainda pontuadas por vidro, aqui e ali. Nunca fiz uma mala tão depressa na minha vida. Era o último sítio onde queria estar, naquele momento. Reparo marginalmente que todo o dinheiro que tinha no apartamento desapareceu, bye bye, que faças alguém feliz. Claro, porta aberta durante horas, todos os vidros que fecham o condomínio desaparecidos, o caos subsequente que não pode perguntar o nome a ninguém.
Ontem foi diferente.
Percorri a rua Gouraud, a rua habitualmente mais animada da zona, pejada de restaurantes e bares e cafés. Que já não existem como os conhecia. Foram esventrados, esvaziados de vida e de recheio. Os danos nos edifícios variam entre necessidade de simples substituição de vidro a catastróficos.
Mas o que mais me impressionou ontem não foram os danos. Foi a incrível força desta gente, armados de vassouras e pás, em pleno esforço de reconstrução e normalização. As poucas lojinhas abertas, a funcionar sem vidros, para servir a enorme massa humana que ocupa agora, de forma mais ou menos frenética, aquela rua. Tendas humanitárias em representação de uma série de países, bancas de apoio alimentar, pessoal de ONG a avaliar danos estruturais e necessidades humanas. Engenheiros pro bono que parecem nascer do chão. Grupos de jovens organizados, coletes amarelos e vassouras na mão, que decidiram que face a tamanho cataclismo as suas férias de Verão seriam passadas a varrer tudo aquilo para longe da mente.
Gemayzhe parece neste momento o centro do mundo, com altos dignatários de uma série de países a chegar todos os dias, a percorrer as ruas destruídas e a prometer ajuda. Ao mesmo tempo que bem perto dali, se continuam a encontrar corpos no meio dos destroços do porto. No meio da esperança, continuamos a sentir laivos de tragédia, nos gritos que cortam eventualmente os fins de tarde, de alguma família que recebeu más notícias.
Esperemos que as promessas se materializem em algo que sirva o povo.
Esperemos que a esperança que os alimenta não mingue e morra. Perguntem-me daqui a uns meses. Pode ser que a minha fé na humanidade continue restaurada.
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