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E o cedro chorou

por A Mona Lisa tinha Gases, em 09.08.20

A primeira explosão atraiu-me a atenção para a janela.

Beirute é uma cidade barulhenta. O visitante recente estranha esta miríade de pequenos estouros que se ouve durante o dia. Obras, tubos de escape, aparelhos de ar condicionado, geradores a arrancar...

Mas de alguma forma, este som era diferente. 

Estava no sofá da sala da minha casa de Gemayzhe, no segundo andar do edifício, chegada do trabalho há pouco tempo. Televisão ligada, telefone na mão, olhar na janela.

Dizem que se passaram alguns segundos entre a primeira e a segunda. Mas não tenho noção disso. Tenho noção de muito pouco a seguir à primeira explosão. Não sei se não me lembro, se o meu cérebro nem chegou a registar porque os olhos não viram. Sinto sangue na boca. Estou a levantar-me do chão, algures no meio da sala. Uma das minhas janelas encontra-se agora tombada sobre o encosto de um dos sofás e o som dos alarmes de incêndio enche o ar. 

Permito-me alguns segundos de pânico. Ando de um lado para o outro, entre a varanda e o centro da sala e só conseguia pensar "Eu não acredito que eles bombardearam!". O primeiro pensamento, a primeira teoria que se formou na minha cabeça, era que teria sido um ataque dos vizinhos do sul. Tendo em conta o escalar de tensões das semanas anteriores. Mas não fazia sentido nenhum. Não naquele dia e muito menos ali, naquele bairro, conhecido por abrigar muita  população estrangeira residente. Um bairro residencial.

O ar está-se a tornar irrespirável, um fumo e uma poeira espessos preenchem tudo. Durante alguns segundos penso que vou morrer ali, sufocada pela poeira. Corro para as escadas (a porta aberta pela violência da vaga que varreu tudo) e encontro o primeiro vizinho a descer. Não sabe de nada, diz-me que desça. Sinto algo estranho na minha boca. Algo duro. Terei um pedaço de vidro na boca? Percorro-lhe o interior com a ponta dos dedos e retiro de lá um enorme incisivo. Deixo-o cair no chão como se não fosse nada, como se não fosse parte de mim que estou a abandonar. Entro em modo de sobrevivência, então. Volto a entrar no apartamento e começo a correr pelas divisões para recolher tudo o que me pareceu mais importante naquele momento: passaporte, carteira, telefone, transportadora da gata. A gata... Onde é que está a gata? Ao fim de alguns minutos a espreitar por baixo de móveis, encontro-a por baixo do sofá. Não me oferece grande resistência quando afasto o sofá (como se fosse uma pena, santa adrenalina) e a recolho. O que é incaracterístico. Calculo que esteja aliviada por ser resgatada durante o fim do mundo. Não me parece estar ferida.

Começa a difícil tarefa de descer até ao rés-do-chão. E são só dois andares que parecem dez. As escadas estão cobertas de detritos, ferros retorcidos, objectos não identificados. Tenho que escorregar por cima de algo que cobre os degraus e que venho depois a constatar ser uma porta de entrada de um apartamento. Finalmente chego ao pátio do condomínio, onde se começam a juntar outros residentes. Ninguém sabe de nada, os contactos telefónicos não respondem a nada. Sinto as pingas de sangue a escorrerem-me pela cara, pintam-me a camisola, as calças, o chão em redor. Tudo é vermelho. Naquele grupo de gente ali reunida, há diferentes gravidades de ferimentos. A maioria são cortes por estilhaços de vidro.

Decido sair do pátio e dirigir-me à rua. Quando olho em direcção à secretária da recepção, num patamar inferior ao que me encontro, vejo o concierge do edifício a arrastar o segurança inanimado. O rapaz que me recebe sempre com um sorriso, que está sempre pronto a ajudar, que nunca espera nada em troca. A minha ligação à terra em Gemayzhe. Descubro uns dias depois que faleceu ali e que o corpo que vi a arrastarem já estava vazio. É a minha maior perda desse dia, e nem sequer é minha por direito.

Na rua, o caos é maior. A dimensão é incompreensível. Nada parece real. Carros esmagados por uma força invisível, como se um gigantesco punho tivesse descido dos céus, fachadas desaparecidas, carros que arrastam entulho por baixo dos pára-choques. Passa um rapaz de moto à minha frente, pára e oferece-me duas garrafas de água. "Lava a cara", diz-me. O sangue continua a cair-me em gotas, proveniente de um golpe no nariz, de uma boca fechada para obras. Uma vizinha olha para mim como se me visse pela primeira vez e diz-me que tenho que ir ao hospital, que há amigos que vêm a caminho. Antes disso, aparece um homem que lhe começa a falar em árabe. Gesticula para que o acompanhe, que vamos para o hospital. Ela grita-me, por cima de todo o caos, enquanto aponta para ele: "Hospital, hospital!"

Sigo o homem, que me abre a porta da parte de trás de um carro desconhecido. Entro, e na parte da frente, um casal de libaneses que nunca vi na minha vida, espera que feche a porta. E seguimos. Pela estrada que leva à auto-estrada. A estrada que passa em frente ao porto. A rapariga, grávida, diz-me pela primeira vez que se fala em acidente. Algo no porto, diz-me. O conceito parece-me ainda mais alienígena do que um ataque. Nada faz sentido. O que poderia ter explodido num porto que provocasse aquilo que estava a ver? Do lado esquerdo torna-se visível a coluna de fumo, os silos que vejo todos os dias a minutos de chegar a casa, destruídos, retorcidos, a primeira linha de defesa contra o que se passou. Há carros abandonados no meio da auto-estrada com airbags rebentados, alguns estão virados ao contrário, de lado, como se fossem feitos de papel. Há entulho e ferro retorcido por todo o lado, há famílias inteiras que seguem pela auto-estrada a pé. Os metros sucedem-se, numa cadência lenta, e tudo parece cada vez mais irreal. Ao terceiro hospital por fim deixam-me entrar (os dois primeiros estavam cheios). Ela vem comigo, chama alguém para me ajudar e desaparece logo a seguir a dar-me o número de telefone. Ainda não lhe consegui ligar. Como é que se agradece uma coisa daquelas? Como é que se agradece pela humanidade? Deveria haver palavras reservadas só para isso.

Começo a receber as chamadas de pânico de casa, do outro lado da cidade, do outro lado do mundo, e a minha função torna-se informar o maior número de pessoas possível de que estou ferida, mas estou viva e nada me leva a acreditar que isso possa mudar entretanto. Passo o telefone a estranhos para que expliquem aos meus interlocutores onde estou. Passo-o depois de novo para que algumas pessoas possam falar com familiares. Somos todos estranhos uns aos outros, mas ao mesmo tempo nenhum de nós é. Estamos todos juntos, passámos todos pelo mesmo. Sucedem-se pequenos gestos de bondade, como se tentassem estancar uma enorme hemorragia com pensos rápidos. Mas são tantos os pensos rápidos que funciona, faz diferença. Senti-me momentaneamente grata por estar a passar por aquilo com aquele povo e com nenhum outro. Talvez não faça muito sentido, mas é o que sinto naquele momento.

À medida que os minutos passavam tornava-se óbvio que eu não iria receber grandes cuidados médicos. O que me preocupava mais era a dor no peito e o corte no nariz que não iria parar de sangrar. O resto era assunto para dentista. Mas o que era isso face às pessoas com escoriações por todo o corpo, olhos ensanguentados, pessoas com t-shirts que tinham sido pulverizadas, nada mais que retalhos de tecido sobre o corpo, membros perdidos, ferimentos internos tão grandes que se manifestavam com gritos constantes? Veio uma enfermeira palpar se haveria algum osso partido no meu tórax, uma médica ver se as minhas pupilas estavam reactivas e os sítios onde tinha batido com a cabeça, um outro enfermeiro limpar-me as feridas. Finalmente um outro médico diz-me que não tem suturas. E decido que basta de horrores. O meu colega, a primeira pessoa com quem consegui contactar naquele dia, tinha sido trazido de moto pelo senhorio, depois de andarem à minha procura por todos os hospitais da zona. Seguimos juntos, com um dos motoristas da empresa que se juntou a nós entretanto, para casa dele. Onde estou desde então. Um porto de abrigo inventado do nada que me sabe pela vida.

No dia seguinte, a empresa envia um motorista para me levar a um dentista e surge então o relatório dos danos físicos: fractura composta do maxilar superior. Dois a três dentes perdidos. Necessidade de reconstrução de tecidos moles. Um dos dentistas chamou-lhe um "dano catastrófico". Mas todos me relembram que poderia ter sido muito pior. Todos me relembram que a minha casa fica a menos de 800 metros da explosão e que não perdi nada que não seja substituível. Apetece-me insultá-los, mas eles têm razão. Podia ter sido muito pior. E foi muito pior, para muita gente.

Por minha parte, tenho uma nova perspectiva em relação à vida e à morte e às coisas e às pessoas. Ainda não sei bem qual é. Está aqui ainda retida no meu peito, por baixo das mazelas e das dores. E do choque emocional que todos os dias parece mais distante. Mas que está cá. Seguramente, quando se decidir a manifestar, será algo de muito enriquecedor.

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publicado às 19:04



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Ninguém percebe o Leonardo. A Mona Lisa nao estava a sorrir, estava com gases. É o primeiro registo de arte escatológica.

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