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Sim, é verdade, ainda não acabou...
Os libaneses dizem-me, naquele tom de brincadeira mas que é muito a sério, que só me falta uma guerra. Se calhar passo. Acho que já tenho crédito suficiente para o caso de deus existir.
Um mês depois do sismo que pensei que nos ia matar, o Líbano atira-me mais uma bola com efeito.
1 de Março. Acaba-se o gás cá em casa. Temos tido uns problemas com a ligação, há pouco tempo mudaram-me o redutor, quando numa manhã acordo e o odor na cozinha era inconfundível. Assunto resolvido, nada fazia prever o que se seguiria. O rapaz vem com a bilha, faz a ligação e eu continuo fixada na PS. Faz-me confusão que usem o isqueiro para verificar se a ligação está bem feita. Vai contra tudo o que aprendemos do nosso lado do mundo. Mas todos eles o fazem, enfim.
Cinco minutos depois de ele sair, começo a ouvir um ruído estranho vindo da cozinha. Todas as minhas desgraças começam com ruídos estranhos, já devia saber melhor. Mas nada me preparou. Quando abro o armário da cozinha, a bilha do gás está a lançar uma coluna de chamas da zona do redutor. Acho que nunca vi nada tão pouco condizente com o normal. Tento apagá-la com um pano e entretanto tenho de enfiar a cadela na varanda porque todos os cães são bombeiros de coração, aparentemente. Desisto e grito pelo meu marido, a dormir na divisão do lado. Depois de alguns momentos a tentarmos apagar o incêndio, o gás começa a alimentar mais as chamas num ruído sibilante e aterrorizante. Vai explodir, pensei. Corremos para as escadas, para chamar ajuda. A cadela aparece ao nosso lado, não sei bem como. Não só é bombeira como sabe arrombar portas. Lá em baixo, grito por ajuda e, pouco depois, um grupo aparece com um extintor. Espero que regressem para poder entrar, a minha gata está no quarto.
Para meu horror, aparecem-me de volta com os cabelos literalmente em pé. Apanharam um choque eléctrico a tentar apagar o incêndio. Porque claro que pelo armário onde está a bilha do raio do gás passam fios eléctricos. Não é seguro subir. Chegam os bombeiros e peço-lhes que salvem a minha gata.
Cá em baixo, ouvimos os vidros da varanda a quebrar com o calor. Estalos indistintos que sabemos que são tudo aquilo que temos deste lado do mundo a desaparecer. Não ouço a minha gata. As pessoas que se agregaram no pátio tentam fazer conversa, distrair-me da desgraça, mas como poderia? A Misha está lá em cima.
Um dos bombeiros traz o corpo inerte pouco depois. Está morta. Naquele momento, não sou capaz de me aproximar. Calculo que seja o meu verdadeiro momento de fraqueza desde que cheguei a este país. Asseguram-me que não está queimada, que parece estar a dormir, mas eu não consigo. Pouco depois, alguém passa por mim e diz-me que a vai levar ao veterinário, que talvez não esteja morta. Sinto o impulso de correr para os acompanhar, mas não consigo. De alguma forma sei que a esperança é vã e que a gata que me acompanhou durante o pior momento da minha vida, que não me mostrou mais nada do que amor (tirando o episódio do aeroporto, mas isso é outra história) depois de ter sobrevivido comigo a uma das maiores explosões não nucleares de sempre, já não é, já não existe, já não terá de suportar as agruras deste país para onde decidi que a tinha de trazer. A notícia de que faleceu, pouco depois, quase não me provoca uma reacção. Pergunto-me, um mês depois, se não estaria em choque. Sinto a falta dela todos os dias. Só há pouco me permiti chorar, copiosamente, após a notícia do cancro do meu pai, sobre tudo o que perdi e ainda resta perder.
Naquele dia, recordo ter ligado novamente o modo de sobrevivência e ter subido ao apartamento, rodeada de bombeiros, para tentar recuperar os nossos passaportes. O chão repleto de água e químicos e destroços do que era a nossa vida, e o ar irrespirável outra vez.
Estamos desterrados nas montanhas do Líbano, um pouco a sul de Beirute, no momento em que escrevo isto, à espera que terminem as obras do apartamento. Que estou a pagar. Advogados degladiaram-se, como é típico da classe, para concluírem que a responsabilidade é minha. Talvez isso só faça sentido nesta latitude. Ou talvez não
Todos me perguntam porque ainda cá estou, porque fico, apesar de todas as desgraças para as quais não contribuí, e nem eu sei dizer. Ou saberei mas hesito em transformá-lo em palavras?
Devo muito ao Líbano, mas se calhar, no balança do dever e haver, o Líbano deve-me mais a mim.
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