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A Elsa é uma miúda de 19 anos, que sempre viveu nos arredores de Lisboa e se muda de malas e bagagens para Castelo Branco, para tirar Agronomia na Escola Superior Agrária.
No Natal desse ano, quando volta a casa, conta-me que esteve enfiada num bidão com merda até ao pescoço...
Confesso que fiquei chocada. Não tanto com a merda até ao pescoço, mas pela descontração com a qual ela me justificou que «não foi nada de especial, foi durante as praxes». Ah! Pois, se uma pessoa há-de estar enfiada num bidão de merda, que seja numa praxe.
Questionei-a, na altura, porque é que tinha alinhado naquilo. Porque não percebia, sinceramente. Ela assumiu um ar um pouco impaciente, como se a resposta fosse óbvia, e relembrou-me que estava numa cidade a centenas de quilómetros de casa, onde não conhecia ninguém e que era sempre bom ter amigos, pessoas com quem passar o tempo, enquanto durasse o curso. Que grande parte dos alunos vivia na zona, já se conheciam, e ela era a intrusa. Pois...
Isso preocupou-me, admito. Não sabia que na zona centro, um dos pré-requisitos para se fazer amigos, era ter feito um belo banho de excremento de porco. Suponho que tenha as suas vantagens, deve ter poupado imenso em perfume naqueles 4 anos.
Cá em Lisboa, esta vossa amiga entra na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa para ir estudar calhaus.
E lá andavam aquelas crianças vestidas de preto, a pastar alunos, entre eles os meus colegas. Eu até percebo a cena da capa. Eu quando era miúda também gostava de fingir que era o Batman. Mas depois passou-me.
Confesso que não apareci por lá muitas vezes durante o período de praxes. Acompanhei-os durante uma ou duas tardes e depois decidi que não me apetecia andar enfiada no meio de uma cambada de narcisistas que falam demasiado alto.
Veja-se, eu não fui praxada, não por falta de tentativa, porque várias vezes se dirigiram na minha direcção com um batom que já tinha percorrido o focinho de dezenas de adolescentes, mas porque na altura lembro-me de explicar que, ao contrário deles, que ainda chupavam a proverbial teta materna, eu tinha que trabalhar e não podia aparecer pelo escritório como se tivesse a passar ao lado da CIN durante uma explosão.
Ninguém me obrigou a nada, mas ainda ouvi a insinuação de que o resto do ano poderia ser difícil para mim. Claro que, já na altura, eu estava-me bem a borrifar. Mas se não estivesse, se fosse uma miúda insegura, se calhar teria ficado desconcertada com a cumplicidade que os meus colegas tinham adquirido, derivado com certeza de se terem andado a atirar para o chão em manada de cada vez que passava um avião imaginário. Da cumplicidade que advém de bajularem o veterano com meia dúzia de matrículas que ainda está no terceiro ano. Cumplicidade que eu não sentia.
Não me desconcertou mas a verdade é que ninguém sentiu a minha falta quando decidi, poucas semanas depois, que me ia mudar para o outro lado da rua, para a Clássica, no ano seguinte.
A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa é moderadamente anti-praxe, conta com forte presença do Mata (Movimento anti-tradição académica) e a carneirada é muito menos pronunciada do que noutras paragens. Na FLUL é quase o aluno que tem que pedir para ser praxado. Também se atiram para o chão (ainda estou para perceber a tendência) e cantam muito mas depois vão fumar uns charros para o bar novo, entram na zone da descontração e o nível de berraria e insulto gratuito é muito inferior.
Três casos distintos, três abordagens diferentes.
A questão que me inquieta mais é, na sequência do julgamento público que advém da situação do Meco, haver por aí muito líder estudantil (seja lá o que isso for) a dizer que desconhecia, que ignorava, que essas coisas não acontecem nas suas respectivas faculdades.
Vamos lá ver uma coisa, toda a gente sabe. TODA! E toda a gente é conivente, fecha os olhos, tolera. E as praxes abusivas ou violentas acontecem mais ou menos vezes, e em maior ou menor grau, em quase todo o lado.
Quando saímos de casa, com quantas pessoas estúpidas nos cruzamos? Quantos imbecis, frustrados, tiranos, psicopatas, transtornados encontramos? Porque uma faculdade é só um microcosmos, uma pequena fatia representativa da sociedade. Portanto, porque é que não haveríamos de encontrar portadores desses distúrbios no ambiente escolar?
Muita gente diz que não podemos generalizar, que não podemos enfiar as praxes todas no mesmo saco. E eu não estou a fazê-lo. O que me chateia na praxe é a maior parte dos integrantes estar ali contrariado. Se calhar preferiam estar a beber um cafezinho na esquina, a ter uma conversa decente. Duvido que estivesse na sua lista de prioridades na vida estar enfiado num bidão com merda até ao pescoço.
Ninguém lhes aponta uma arma, é verdade, mas todo o mecanismo de pressão psicológica (mais ou menos subtil) que rodeia estas práticas, arrepia-me a alma.
Mas também não alinho na raivinha nacional contra o dux ou o veterano ou o Batman de trazer por casa. O que eu sinto em relação a estes miúdos é pena. Em primeiro lugar porque se levam demasiado a sério, imbuem-se de uma importância que não existe e precisam claramente de arranjar um hobby melhor. Ou em emprego em part-time...
E tenho pena deles porque é claramente gente com muitos daddy issues. Pobres meninos tristes!
Será que a transladação por atacado fica mais barata?
Pensemos no assunto!
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