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Portanto, cá está, a guerra que todos os meus amigos me dizem que me faltava na caderneta.
Mas isto não é sobre mim.
Desde o início de Outubro que o Líbano tem estado envolvido no conflito entre o Hamas e Israel, através do Hezbollah, com conflitos ao longo da fronteira, que já reclamaram as vidas de inúmeros elementos deste lado da fronteira.
Recentemente, Israel fez uma incursão até aos subúrbios a sul de Beirute, para eliminar um alto membro do Hamas, destruindo parte de uma zona residencial. Esse foi um momento interessante, com inúmeras mensagens e chamadas a perguntar se já estavávamos a caminho de Portugal. Mais uma vez, isto não é sobre nós: aqui estão a morrer jornalistas, militantes e civis, num constante ataque, algumas vezes aparentemente indiscriminado, imediatamente respondido, que os analistas dizem enquadrar-se nas rules of engagement. Será?
A maior parte dos libaneses dir-vos-á que o Líbano não está em guerra. Que é só o sul, que é complexo. Que o Hezbollah está a agir sozinho. Mas o Hez tem representação no governo libanês. Imaginem que o PCP começava a bombardear Espanha. E Espanha começava a dizimar Badajoz, mas só Badajoz. Portugal estaria em guerra com Espanha, tão simples quanto isso. Como sempre, aqui, nada é simples, principalmente quando um partido político tem mais poder bélico que o exército do país de onde opera...
Eu digo-vos que, neste momento, vivo num país em guerra. As bombas podem não estar a cair no malfadado porto, aqui tão perto, ou no aeroporto, mas a destruição no sul é inegável. Se se vai espalhar? É impossível dizer.
O que podemos dizer é que a economia do Líbano, já tão abalada pelos inúmeros eventos recentes e pela falta de governo e presidente (sim, ainda), está-se a ressentir. Passámos pela fase das estradas fluidas em hora de ponta (o que significa muito para quem conhece o trânsito infernal de Beirute), pelo aeroporto vazio, pelas lojas e restaurantes recém-abertos para a época natalícia a fechar. Ninguém diria, pelos restaurantes apinhados há duas semanas, pelas guest houses (com preços que não quadram com a realidade do país) sem vagas, pelos centros comerciais com pouco espaço caminhável vago.
Mas isto é o Líbano, uma esquizofrenia que de alguma forma puxa e engana o visitante incauto ou ocasional. Não se passa nada em Beirute, não se passa nada no norte, está tudo bem.
Ou assim nos parece em conversas ocasionais. "Eu vivo a um quilómetro da fronteira, queres vir para um barbecue?". Não dude, se calhar não.
A verdade é que tudo isto é uma espécie de show-off inconsequente porque estamos todos, do norte ao sul, à espera. Os militantes (ou terroristas, dependendo em que zona do mundo vivemos), os civis, os estrangeiros, estamos todos à espera do momento em que não se possa mais ignorar que o país está em guerra. Alguns terão passaportes que lhes permitam evacuar, outros terão mansões nas montanhas em zonas supostamente seguras, outros não terão nada e lidarão com o que viver em momento oportuno. Eu tenho o que convencionámos chamar os "enlatados da guerra". E um número de telefone que regerá o meu futuro.
Estamos todos à espera, um dia de cada vez, neste pedaço de terra amaldiçoado e abençoado em partes iguais, a que alguns de nós, por sorte ou destino, decidimos chamar Casa.
Sim, é verdade, ainda não acabou...
Os libaneses dizem-me, naquele tom de brincadeira mas que é muito a sério, que só me falta uma guerra. Se calhar passo. Acho que já tenho crédito suficiente para o caso de deus existir.
Um mês depois do sismo que pensei que nos ia matar, o Líbano atira-me mais uma bola com efeito.
1 de Março. Acaba-se o gás cá em casa. Temos tido uns problemas com a ligação, há pouco tempo mudaram-me o redutor, quando numa manhã acordo e o odor na cozinha era inconfundível. Assunto resolvido, nada fazia prever o que se seguiria. O rapaz vem com a bilha, faz a ligação e eu continuo fixada na PS. Faz-me confusão que usem o isqueiro para verificar se a ligação está bem feita. Vai contra tudo o que aprendemos do nosso lado do mundo. Mas todos eles o fazem, enfim.
Cinco minutos depois de ele sair, começo a ouvir um ruído estranho vindo da cozinha. Todas as minhas desgraças começam com ruídos estranhos, já devia saber melhor. Mas nada me preparou. Quando abro o armário da cozinha, a bilha do gás está a lançar uma coluna de chamas da zona do redutor. Acho que nunca vi nada tão pouco condizente com o normal. Tento apagá-la com um pano e entretanto tenho de enfiar a cadela na varanda porque todos os cães são bombeiros de coração, aparentemente. Desisto e grito pelo meu marido, a dormir na divisão do lado. Depois de alguns momentos a tentarmos apagar o incêndio, o gás começa a alimentar mais as chamas num ruído sibilante e aterrorizante. Vai explodir, pensei. Corremos para as escadas, para chamar ajuda. A cadela aparece ao nosso lado, não sei bem como. Não só é bombeira como sabe arrombar portas. Lá em baixo, grito por ajuda e, pouco depois, um grupo aparece com um extintor. Espero que regressem para poder entrar, a minha gata está no quarto.
Para meu horror, aparecem-me de volta com os cabelos literalmente em pé. Apanharam um choque eléctrico a tentar apagar o incêndio. Porque claro que pelo armário onde está a bilha do raio do gás passam fios eléctricos. Não é seguro subir. Chegam os bombeiros e peço-lhes que salvem a minha gata.
Cá em baixo, ouvimos os vidros da varanda a quebrar com o calor. Estalos indistintos que sabemos que são tudo aquilo que temos deste lado do mundo a desaparecer. Não ouço a minha gata. As pessoas que se agregaram no pátio tentam fazer conversa, distrair-me da desgraça, mas como poderia? A Misha está lá em cima.
Um dos bombeiros traz o corpo inerte pouco depois. Está morta. Naquele momento, não sou capaz de me aproximar. Calculo que seja o meu verdadeiro momento de fraqueza desde que cheguei a este país. Asseguram-me que não está queimada, que parece estar a dormir, mas eu não consigo. Pouco depois, alguém passa por mim e diz-me que a vai levar ao veterinário, que talvez não esteja morta. Sinto o impulso de correr para os acompanhar, mas não consigo. De alguma forma sei que a esperança é vã e que a gata que me acompanhou durante o pior momento da minha vida, que não me mostrou mais nada do que amor (tirando o episódio do aeroporto, mas isso é outra história) depois de ter sobrevivido comigo a uma das maiores explosões não nucleares de sempre, já não é, já não existe, já não terá de suportar as agruras deste país para onde decidi que a tinha de trazer. A notícia de que faleceu, pouco depois, quase não me provoca uma reacção. Pergunto-me, um mês depois, se não estaria em choque. Sinto a falta dela todos os dias. Só há pouco me permiti chorar, copiosamente, após a notícia do cancro do meu pai, sobre tudo o que perdi e ainda resta perder.
Naquele dia, recordo ter ligado novamente o modo de sobrevivência e ter subido ao apartamento, rodeada de bombeiros, para tentar recuperar os nossos passaportes. O chão repleto de água e químicos e destroços do que era a nossa vida, e o ar irrespirável outra vez.
Estamos desterrados nas montanhas do Líbano, um pouco a sul de Beirute, no momento em que escrevo isto, à espera que terminem as obras do apartamento. Que estou a pagar. Advogados degladiaram-se, como é típico da classe, para concluírem que a responsabilidade é minha. Talvez isso só faça sentido nesta latitude. Ou talvez não
Todos me perguntam porque ainda cá estou, porque fico, apesar de todas as desgraças para as quais não contribuí, e nem eu sei dizer. Ou saberei mas hesito em transformá-lo em palavras?
Devo muito ao Líbano, mas se calhar, no balança do dever e haver, o Líbano deve-me mais a mim.
Se alguém me contasse esta história, e não a tivéssemos vivido, eu achava que era tanga.
Não há como.
Em Fevereiro, a Turquia e a Síria foram assoladas por um tremendo sismo. As imagens da destruição entraram-nos pelas casas sem pedir licença, num tenebroso recordar de que a natureza é a dona disto tudo e que somos tão pequenos para lhe fazer face.
O que muitas pessoas ignoram é que esse sismo foi sentido em várias zonas do Líbano, incluindo na minha casa.
Era tarde, três, quatro, já não recordo. Estou deitada, mas acordada, a pensar se deveríamos fazer alguma coisa para comemorar o meu aniversário no dia seguinte. Afinal, já tenho "dentes", depois de um ano em cirurgias, já quase não sinto dores, é agora finalmente o momento de celebrar.
Começo a ouvir um ruído nas escadas. O meu marido ainda está a trabalhar na sala e pergunto-lhe o que se passa. "Está alguém com um escadote, estão a arranjar alguma coisa". Às três da manhã?! Levanto-me, mais para me queixar do que para confrontar o senhor da manutenção inoportuno e, assim que assento os pés no chão, não sinto a segurança habitual de um plano sólido. O chão está a abanar. É indescritível, a sensação. Suponho que como a ausência de gravidade, a subversão das regras da física.
Corro para a sala e também ele já está de pé. "O prédio está a abanar!", exclamo num grito contido. Abraçamo-nos debaixo do vão de uma porta, à espera, enquanto todo o prédio abana como um barco batido por vagas gigantescas. Pensamos os dois que é agora, vamos morrer ali, debaixo dos escombros de um prédio de doze andares.
Ao fim do que pareceu um eternidade, tudo pára. Já não há escadote (as coberturas de aço das zonas técnicas a abanar), já não há aquele ruído da terra a protestar, até as nossas respirações parecem pausar.
Estamos vivos. Devemos sair, para o caso de haver réplicas? Ouvimos vizinhos a descer as escadas, recusam-se a ficar dentro de portas. Pequenas coisas relembram-me a explosão do porto. Mas ficamos.
Estamos vivos. Mas tenho a sórdida sensação que este país, este mundo, me está a tentar matar. Já não tenho paciência.
Chocante, não é?
Como é que nós, que vivemos a nossa vida tranquila na União Europeia, temos alguma culpa na carnificina que ocorre agora diariamente em Moçambique?
Analisemos.
Cabo Delgado era o paraíso, certo? O local para onde íamos de férias comer o belo camarão-tigre a preços irrisórios e apreciar a natureza no seu estado mais selvagem e intocado.
O que nunca pensámos, porque nunca pensamos habitualmente quando estamos de férias num país sub-desenvolvido cuja população vive maioritariamente abaixo do limiar da pobreza, é qual é o nível de vida dos locais que nos servem esse belo camarão tigre.
Moçambique é um país em vias de desenvolvimento. E o que é que isso significa, na verdade? Não, não significa só grande dependência de combustíveis fósseis. Significa gente a viver em barracas de madeira e a viver com menos de um dólar por dia. Significa grande investimento em construção e pouco investimento em recursos humanos. Significa, com sorte e com líderes competentes, que partes do país se tornarão mais industrializadas e "civilizadas", mas que outras partes continuarão ainda na miséria para alimentar essas mesmas partes bonitas e turísticas e que gostamos tanto de visitar. Porque é barato, e porque é o paraíso e porque as pessoas são acolhedoras.
E então o que é que nós fazemos? Nós, que temos dinheiro para viajar pelo mundo e comer camarão tigre à beira da piscina? Fechamos os olhos. Contentamo-nos em passar aquela semana no paraíso, confortados com a ideia de que estamos a levar o nosso dinheiro para um país que precisa dele. E ignoramos o resto. Ignoramos que famílias que precisam de alimentar os filhos estão reféns de grupos que lhes levam mais miséria disfarçada de oportunidade.
A incursão jihadista em Cabo Delgado começou em 2017. E quando é que demos por ela? Quando a Total se sentiu ameaçada. Quando os grandes grupos industriais que exploram os recursos do país enfrentaram o potencial interrompimento das suas actividades. Quando as decapitações começaram a ser notícia internacional porque já estavam na proximidade dos interesses internacionais.
Até agora podíamos todos ignorar a realidade. Porque não tinha grande impacto na nossa vida. Como sempre! Que ninguém se engane. Nascer num país com recursos, direitos humanos, dinheiro, é só um acaso. Ignorar outras partes do mundo que não têm essa sorte ou que estão do outro lado do espectro por pura coincidência ou por imposição histórica é criminoso.
Principalmente quando estamos a ignorar a ameaça jihadista.
Mais cedo ou mais tarde, o karma vai funcionar de forma espectuacular. E certamente, alguém se vai queixar que não foi avisado...
Regressei ontem a casa.
Já lá tinha ido há uns dias buscar roupa e outros pertences deixados para trás naquela tarde fatídica. Essa foi uma viagem alucinante. Saí com a minha amiga Joumana de Verdun e o caminho que deveria levar uns 15 minutos arrastou-se durante mais de uma hora. Estradas cortadas devido a queda de fachadas na via, trânsito infernal a caminho do "ground zero", inversões de marcha sem fim para encontrar vias desimpedidas. A polícia a tentar fazer-nos voltar para trás, descrentes quando ela lhes explica onde fica a minha casa. Um sorriso desdentado da minha parte resolve a questão. Quando finalmente chegámos à minha rua e saímos do carro, o cenário era devastador. Curioso como a minha memória da minha rua estava tão enviesada face à realidade. Neste caso, muito pior do que a minha ficção. As pessoas a arrastar sacos e pertences, cães ao colo, vestuários improvisados, parecíamos todos refugiados de uma guerra sem lados. Há dois dias que ando vestida com uma camisa e umas calças de fato de treino masculino demasiado grandes para o meu corpo. Estivemos muito pouco tempo dentro do apartamento, depois de atravessarmos o hall destruído do edifício, depois de passarmos por baixo de vigas tombadas sobre a escadaria e de subir as escadas ainda pontuadas por vidro, aqui e ali. Nunca fiz uma mala tão depressa na minha vida. Era o último sítio onde queria estar, naquele momento. Reparo marginalmente que todo o dinheiro que tinha no apartamento desapareceu, bye bye, que faças alguém feliz. Claro, porta aberta durante horas, todos os vidros que fecham o condomínio desaparecidos, o caos subsequente que não pode perguntar o nome a ninguém.
Ontem foi diferente.
Percorri a rua Gouraud, a rua habitualmente mais animada da zona, pejada de restaurantes e bares e cafés. Que já não existem como os conhecia. Foram esventrados, esvaziados de vida e de recheio. Os danos nos edifícios variam entre necessidade de simples substituição de vidro a catastróficos.
Mas o que mais me impressionou ontem não foram os danos. Foi a incrível força desta gente, armados de vassouras e pás, em pleno esforço de reconstrução e normalização. As poucas lojinhas abertas, a funcionar sem vidros, para servir a enorme massa humana que ocupa agora, de forma mais ou menos frenética, aquela rua. Tendas humanitárias em representação de uma série de países, bancas de apoio alimentar, pessoal de ONG a avaliar danos estruturais e necessidades humanas. Engenheiros pro bono que parecem nascer do chão. Grupos de jovens organizados, coletes amarelos e vassouras na mão, que decidiram que face a tamanho cataclismo as suas férias de Verão seriam passadas a varrer tudo aquilo para longe da mente.
Gemayzhe parece neste momento o centro do mundo, com altos dignatários de uma série de países a chegar todos os dias, a percorrer as ruas destruídas e a prometer ajuda. Ao mesmo tempo que bem perto dali, se continuam a encontrar corpos no meio dos destroços do porto. No meio da esperança, continuamos a sentir laivos de tragédia, nos gritos que cortam eventualmente os fins de tarde, de alguma família que recebeu más notícias.
Esperemos que as promessas se materializem em algo que sirva o povo.
Esperemos que a esperança que os alimenta não mingue e morra. Perguntem-me daqui a uns meses. Pode ser que a minha fé na humanidade continue restaurada.
A primeira explosão atraiu-me a atenção para a janela.
Beirute é uma cidade barulhenta. O visitante recente estranha esta miríade de pequenos estouros que se ouve durante o dia. Obras, tubos de escape, aparelhos de ar condicionado, geradores a arrancar...
Mas de alguma forma, este som era diferente.
Estava no sofá da sala da minha casa de Gemayzhe, no segundo andar do edifício, chegada do trabalho há pouco tempo. Televisão ligada, telefone na mão, olhar na janela.
Dizem que se passaram alguns segundos entre a primeira e a segunda. Mas não tenho noção disso. Tenho noção de muito pouco a seguir à primeira explosão. Não sei se não me lembro, se o meu cérebro nem chegou a registar porque os olhos não viram. Sinto sangue na boca. Estou a levantar-me do chão, algures no meio da sala. Uma das minhas janelas encontra-se agora tombada sobre o encosto de um dos sofás e o som dos alarmes de incêndio enche o ar.
Permito-me alguns segundos de pânico. Ando de um lado para o outro, entre a varanda e o centro da sala e só conseguia pensar "Eu não acredito que eles bombardearam!". O primeiro pensamento, a primeira teoria que se formou na minha cabeça, era que teria sido um ataque dos vizinhos do sul. Tendo em conta o escalar de tensões das semanas anteriores. Mas não fazia sentido nenhum. Não naquele dia e muito menos ali, naquele bairro, conhecido por abrigar muita população estrangeira residente. Um bairro residencial.
O ar está-se a tornar irrespirável, um fumo e uma poeira espessos preenchem tudo. Durante alguns segundos penso que vou morrer ali, sufocada pela poeira. Corro para as escadas (a porta aberta pela violência da vaga que varreu tudo) e encontro o primeiro vizinho a descer. Não sabe de nada, diz-me que desça. Sinto algo estranho na minha boca. Algo duro. Terei um pedaço de vidro na boca? Percorro-lhe o interior com a ponta dos dedos e retiro de lá um enorme incisivo. Deixo-o cair no chão como se não fosse nada, como se não fosse parte de mim que estou a abandonar. Entro em modo de sobrevivência, então. Volto a entrar no apartamento e começo a correr pelas divisões para recolher tudo o que me pareceu mais importante naquele momento: passaporte, carteira, telefone, transportadora da gata. A gata... Onde é que está a gata? Ao fim de alguns minutos a espreitar por baixo de móveis, encontro-a por baixo do sofá. Não me oferece grande resistência quando afasto o sofá (como se fosse uma pena, santa adrenalina) e a recolho. O que é incaracterístico. Calculo que esteja aliviada por ser resgatada durante o fim do mundo. Não me parece estar ferida.
Começa a difícil tarefa de descer até ao rés-do-chão. E são só dois andares que parecem dez. As escadas estão cobertas de detritos, ferros retorcidos, objectos não identificados. Tenho que escorregar por cima de algo que cobre os degraus e que venho depois a constatar ser uma porta de entrada de um apartamento. Finalmente chego ao pátio do condomínio, onde se começam a juntar outros residentes. Ninguém sabe de nada, os contactos telefónicos não respondem a nada. Sinto as pingas de sangue a escorrerem-me pela cara, pintam-me a camisola, as calças, o chão em redor. Tudo é vermelho. Naquele grupo de gente ali reunida, há diferentes gravidades de ferimentos. A maioria são cortes por estilhaços de vidro.
Decido sair do pátio e dirigir-me à rua. Quando olho em direcção à secretária da recepção, num patamar inferior ao que me encontro, vejo o concierge do edifício a arrastar o segurança inanimado. O rapaz que me recebe sempre com um sorriso, que está sempre pronto a ajudar, que nunca espera nada em troca. A minha ligação à terra em Gemayzhe. Descubro uns dias depois que faleceu ali e que o corpo que vi a arrastarem já estava vazio. É a minha maior perda desse dia, e nem sequer é minha por direito.
Na rua, o caos é maior. A dimensão é incompreensível. Nada parece real. Carros esmagados por uma força invisível, como se um gigantesco punho tivesse descido dos céus, fachadas desaparecidas, carros que arrastam entulho por baixo dos pára-choques. Passa um rapaz de moto à minha frente, pára e oferece-me duas garrafas de água. "Lava a cara", diz-me. O sangue continua a cair-me em gotas, proveniente de um golpe no nariz, de uma boca fechada para obras. Uma vizinha olha para mim como se me visse pela primeira vez e diz-me que tenho que ir ao hospital, que há amigos que vêm a caminho. Antes disso, aparece um homem que lhe começa a falar em árabe. Gesticula para que o acompanhe, que vamos para o hospital. Ela grita-me, por cima de todo o caos, enquanto aponta para ele: "Hospital, hospital!"
Sigo o homem, que me abre a porta da parte de trás de um carro desconhecido. Entro, e na parte da frente, um casal de libaneses que nunca vi na minha vida, espera que feche a porta. E seguimos. Pela estrada que leva à auto-estrada. A estrada que passa em frente ao porto. A rapariga, grávida, diz-me pela primeira vez que se fala em acidente. Algo no porto, diz-me. O conceito parece-me ainda mais alienígena do que um ataque. Nada faz sentido. O que poderia ter explodido num porto que provocasse aquilo que estava a ver? Do lado esquerdo torna-se visível a coluna de fumo, os silos que vejo todos os dias a minutos de chegar a casa, destruídos, retorcidos, a primeira linha de defesa contra o que se passou. Há carros abandonados no meio da auto-estrada com airbags rebentados, alguns estão virados ao contrário, de lado, como se fossem feitos de papel. Há entulho e ferro retorcido por todo o lado, há famílias inteiras que seguem pela auto-estrada a pé. Os metros sucedem-se, numa cadência lenta, e tudo parece cada vez mais irreal. Ao terceiro hospital por fim deixam-me entrar (os dois primeiros estavam cheios). Ela vem comigo, chama alguém para me ajudar e desaparece logo a seguir a dar-me o número de telefone. Ainda não lhe consegui ligar. Como é que se agradece uma coisa daquelas? Como é que se agradece pela humanidade? Deveria haver palavras reservadas só para isso.
Começo a receber as chamadas de pânico de casa, do outro lado da cidade, do outro lado do mundo, e a minha função torna-se informar o maior número de pessoas possível de que estou ferida, mas estou viva e nada me leva a acreditar que isso possa mudar entretanto. Passo o telefone a estranhos para que expliquem aos meus interlocutores onde estou. Passo-o depois de novo para que algumas pessoas possam falar com familiares. Somos todos estranhos uns aos outros, mas ao mesmo tempo nenhum de nós é. Estamos todos juntos, passámos todos pelo mesmo. Sucedem-se pequenos gestos de bondade, como se tentassem estancar uma enorme hemorragia com pensos rápidos. Mas são tantos os pensos rápidos que funciona, faz diferença. Senti-me momentaneamente grata por estar a passar por aquilo com aquele povo e com nenhum outro. Talvez não faça muito sentido, mas é o que sinto naquele momento.
À medida que os minutos passavam tornava-se óbvio que eu não iria receber grandes cuidados médicos. O que me preocupava mais era a dor no peito e o corte no nariz que não iria parar de sangrar. O resto era assunto para dentista. Mas o que era isso face às pessoas com escoriações por todo o corpo, olhos ensanguentados, pessoas com t-shirts que tinham sido pulverizadas, nada mais que retalhos de tecido sobre o corpo, membros perdidos, ferimentos internos tão grandes que se manifestavam com gritos constantes? Veio uma enfermeira palpar se haveria algum osso partido no meu tórax, uma médica ver se as minhas pupilas estavam reactivas e os sítios onde tinha batido com a cabeça, um outro enfermeiro limpar-me as feridas. Finalmente um outro médico diz-me que não tem suturas. E decido que basta de horrores. O meu colega, a primeira pessoa com quem consegui contactar naquele dia, tinha sido trazido de moto pelo senhorio, depois de andarem à minha procura por todos os hospitais da zona. Seguimos juntos, com um dos motoristas da empresa que se juntou a nós entretanto, para casa dele. Onde estou desde então. Um porto de abrigo inventado do nada que me sabe pela vida.
No dia seguinte, a empresa envia um motorista para me levar a um dentista e surge então o relatório dos danos físicos: fractura composta do maxilar superior. Dois a três dentes perdidos. Necessidade de reconstrução de tecidos moles. Um dos dentistas chamou-lhe um "dano catastrófico". Mas todos me relembram que poderia ter sido muito pior. Todos me relembram que a minha casa fica a menos de 800 metros da explosão e que não perdi nada que não seja substituível. Apetece-me insultá-los, mas eles têm razão. Podia ter sido muito pior. E foi muito pior, para muita gente.
Por minha parte, tenho uma nova perspectiva em relação à vida e à morte e às coisas e às pessoas. Ainda não sei bem qual é. Está aqui ainda retida no meu peito, por baixo das mazelas e das dores. E do choque emocional que todos os dias parece mais distante. Mas que está cá. Seguramente, quando se decidir a manifestar, será algo de muito enriquecedor.
Deixem-me ser muito clara e directa: o que se está a passar hoje em Beirute, neste preciso momento em que vos escrevo, é uma batalha campal, uma guerra civil sem munição real.
Tive oportunidade de assistir ao vivo ao nascimento desta revolução pacífica, de união das pessoas nas ruas, de cordões humanos para mostrar descontentamento e esperança numa vida melhor.
Foi há mais de três meses, e de lá para cá, podemos dizer que nada melhorou e que a componente pacífica há muito que se evaporou.
Desde há umas semanas para cá (com um período de acalmia durante as festas), o nível de violência tem vindo a aumentar. As diferentes facções apontam dedos umas para as outras, para os supostos autores da violência. Neste momento isso já nem é importante, na verdade.
Esta última semana, que os protestantes decidiram nomear "A semana da raiva", tem visto uma escalada de ânimos como nunca até agora. O governo estaria, segundo os relatos, à beira de ser constituído, pondo cobro a um vazio de poder que dura há quase três meses. À última hora, novos obstáculos surgiram que impossibilitaram esse resultado.
Hoje começou cedo. Às três da tarde já os protestantes atiravam pedras, barreiras metálicas, o que houvesse à mão, contra as forças de segurança. Às quatro já se viam canhões de água e o ar já estava preenchido pelo fumo dos muitos caixotes e pneus incendiados, do gás lacrimogéneo. As ruas enchem-se de sangue, há feridos de ambos os lados. Não há um multibanco que não tenha sido vandalizado na zona de Hamra e a Downtown é o palco habitual de todos os confrontos. Agora derramou para Gemmayzhe, onde vivo. É a primeira vez que isso acontece com este nível de violência desde que vivo na cidade.
Por volta das sete e meia lembrei-me que seria melhor ir tentar levantar dinheiro à caixa que fica mesmo em frente à minha casa. As minhas únicas janelas dão para o pátio interior do complexo, pelo que não estava preparada para o cenário, embora o tenha visto todos os dias desta semana pela televisão. O multibanco já não estava utilizável, os caixotes do lixo estavam todos a arder e os sacos tinham sido atirados pela rua. Os carros passavam com os sacos presos por baixo das rodas, o ar quase irrespirável. Aproximavam-se os estrondos, que neste contexto específico são os disparos de gás lacrimogéneo, o fogo de artifício que os manifestantes atiram contra as forças de segurança e as balas de borracha. Pelo que tenho testemunhado da gestão do "conflito" quando chegamos às balas de borracha, a situação está descontrolada.
Entretanto a rua começa a ser invadida por militares que me perguntam o que estou ali a fazer e me mandam meter dentro de casa. Não é altura para discutir, principalmente com pessoas que têm estado no meio "daquilo" o dia todo. Não é que eu tivesse muito inclinada para ir dar uma volta, confesso, mas estava meio hipnotizada pelo derrame de violência que se encaminhava a passos lentos na minha direcção, com a segurança de saber que a porta do edifício estava a menos de um metro e meio de mim.
Antes de me abrirem a porta ainda vi alguém a tentar argumentar e a ser "metido no lugar" por um militar mais rigoroso. Decido que "that's enough for today".
Despeço-me do segurança e peço-lhe que tenha cuidado. Quando vou a entrar aparecem dois estafetas para entregar comida. Em Beirute a vida continua, apesar do caos. E essa é a razão porque, três meses depois, as pessoas continuam a ir trabalhar todos os dias (apesar das interrupções de estradas dos tempos iniciais que o impediam) e continuam a viver a sua vida, como se nada se passasse, mas ao mesmo tempo com a perfeita noção do que se está a passar. É uma resiliência como raramente temos oportunidade de testemunhar. Ou talvez seja negação, talvez nunca chegue a saber.
Neste momento as pequenas explosões são mais frequentes, pelo que não me parece que volte a sair do apartamento.
A questão agora é perceber durante quanto mais tempo é que Beirute terá capacidade de renascer das cinzas dos incêndios das noites que vão passando.
A fénix terá um limite. Esperemos que amanhã não seja a véspera desse dia.
Se uma imagem vale mais do que mil palavras, uma imagem acompanhada de palavras certeiras vale mais do que mil análises:
Este homem é muito isto, não é? Não é só o tipo que nega o aquecimento global, que faz piadinhas com a dignidade das mulheres e que é cor-de-laranja. É o tipo que acha que pode atacar furacões com bombas nucleares, qual Dom Quixote com os moinhos de vento.
O chato é que esta metáfora, a estamos a viver aqui, fora da fantasia dos livros.
Mais do que nunca, a realidade é mais estranha que a ficção.
Notícia completa em Visão.
Que sorte temos nós em viver no burgo mais badalado do momento.
É turistas por todo o lado, é a crise afastada (?), é capas de jornais e revistas de lifestyle com as nossas cidades, um pouco por todo o mundo.
Venham para o Algarve, descubram a cosmopolita Lisboa, deslumbrem-se com o romântico Porto ou deambulem no bucolismo do Alentejo.
O que é que pode arruinar a nossa inabalável confiança no futuro, o que pode afastar-nos da contemplação do belo?
Que tal um juiz da relação do Porto (a tal cidade tão romântica à qual os turistas começam a acorrer como se estivessem a dar doces), decidir manter a pena suspensa a um tipo que agrediu a esposa com uma moca de pregos porque, e acreditem que se quisesse inventar não conseguia ser tão criativa, já dizia a Bíblia que uma mulher adúltera deve ser punida com pena de morte.
Pelo que há que desculpar o senhor. Ele estava só a ser um bom católico, seja lá o que isto for, a reagir ao calor dos sentimentos de cornudo. A seguir vai haver a formação de um túnel de barrigudos, através do qual a senhora terá de passar, enquanto lhe atiram cuspidelas, impropérios e outros mimos à escolha. Nada de objectos cortantes, que não somos nenhuns selvagens.
O Conselho Superior da Magistratura decidiu não se meter. Para quê, não é? A decisão soberana de um juiz, assente na obra de ficção mais vendida da história, ia dar muita complicação. Mais um pouquinho e metiam-se direitos autorais, era um imbróglio para durar até ao fim dos tempos.
Além disso, toda a gente sabe que os homens são criaturas emocionais, incapazes de controlar os impulsos, a quem devemos perdoar pequenos «deslizes»... Devíamos agradecer, nós, mulheres, em nome daquela pobre coitada que não terá de ser delapidada em praça pública, porque vivemos no pináculo da civilização ocidental.
Agradeçamos, enquanto vemos passar os autocarros panorâmicos e os tuk-tuk repletos de cidadãos ignorantes ao que se passa. Ámen!
Foi uma semana de tumultos sentimentais.
Da morte da representação máxima da minha adolescência.
Da morte da bondade.
Chris Cornell, o virtuoso do grunge, o vocalista masculino com uma das vozes mais poderosas da cena musical, o meu primeiro crush de adolescente. A sombra de um aparente suicídio pesa, levanta questões tenebrosas, faz-nos «pausar» no nosso dia.
De Gilberto Ferraz, com quem tive oportunidade de colaborar profissionalmente, ainda que de forma indirecta, podemos salientar o excelente profissional, o cidadão interventivo. Eu ressalto a sua imensa generosidade e capacidade de se dar, de fazer os outros sentirem-se especiais.
A mim, estes desaparecimentos recordam-me a importância de não nos ocuparmos com coisas que não nos façam felizes. De seguirmos os nossos sonhos, de uma forma ou outra.
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